Sem querer, na ânsia de conhecer ervas medicinais e plantas alucinógenas para sua tese, tornou-se aprendiz de feiticeiro do velho índio. Um longo e penoso aprendizado, uma luta contínua entre seu racionalismo e toda a realidade mágica do xamã, difícil de aceitar e compreender.
“Erva do Diabo”, começa com o primeiro ciclo do poder, mais precisamente tratando das "plantas de poder”, que consta nos três primeiros livros. Dom Juan, a pronúncia é "Ruan", que aliás, não é seu verdadeiro nome, tornou-se o "Benfeitor" de Castãneda, que passa a buscar como meta, transformar-se num "homem de conhecimento”. Para isso teria que vencer os quatro inimigos naturais da humanidade: o Medo, que é o primeiro inimigo natural; a Clareza é o segundo, que ofusca o entendimento; terceiro é o Poder, o mais forte de todos, que torna os homens cruéis e caprichosos; e a Velhice, o último, que é o mais cruel.
Há todo um arcabouço mítico e filosófico nos conhecimentos relatados pelo velho índio, paralelo ao uso ritual das plantas de poder: o peiote, que ele chama de "Mescalito"; datura ou erva-do-diabo (estramônio); e o fuminho, outro cogumelo misturado com outras cinco plantas secas. Nas sociedades modernas, trata-se de alucinógenos terríveis ou vulgarmente chamados de "drogas", aliás, um dos maiores problemas do nosso tempo é o consumo e o tráfico. Mas, o que percebemos através de Castañeda é a grande contradição no uso incorreto e inadequado, do que foi no passado práticas rituais. Para começar, ele foi obrigado a participar da colheita penosa, ritual e respeitosa dos cogumelos. Para ingerir o peiote foi devidamente preparado antes e depois, pois deveria ser tratado em caso de reações desastrosas ao organismo. Isso se deu com todos os três alucinógenos; "sem esses cuidados teria morrido ou sofrido danos irreparáveis. Participou dos Mitotes, que são reuniões de feiticeiros onde é ingerido o peiote.
Tais cerimônias são realizadas durante quatro dias seguidos. Castaneda foi induzido a encarar uma entidade vegetal que deveria ser vista como um amigo aliado, e doador de conhecimento. E realmente essa criatura surge na visão provocada pelo “mescalito”.
"ALIADOS"
Cabe ressaltar que a obra de Castaneda não é uma apologia do uso dos alucinógenos, ou das drogas. A ingestão das plantas de poder, como são chamadas os vegetais que causam estados de realidade não comuns, ou estados especiais de percepção distorcida, ou ainda, consciência alterada, é algo muito antigo, e fazia parte das principais culturas dos povos antigos, do Oriente ao continente americano. Tudo era significativo e ritual, desde a colheita até o preparo e a ingestão da planta. Não é a mesma coisa que está acontecendo hoje nas culturas ditas modernas, em que o sujeito compra maconha, cocaína, cigarro, ou qualquer outra droga, simplesmente para sentir prazer, completamente alienado de significação. Como alguém que sente orgasmo tomando descargas elétricas de alta voltagem. O viciado parece muito com um doido varrido que mete o dedo numa tomada e dá risadas com o choque. Portanto, o uso sob controle das plantas de poder dentro de um contexto cultural, é o que nos oferece Castaneda através dos ensinamentos de Dom Juan.
Várias experiências com os vegetais são descritas: brincar com um cachorro transparente como vidro; entrar por túneis de metal; encontrar um mosquito gigantesco e monstruoso de uns trinta metros; ser transportado numa bolha; voar e até transformar-se em corvo, pois o efeito do “fuminho" era o de tornar o corpo sem forma, daí ser necessária tomar outra forma, e os feiticeiros escolhem a de pássaros.Resumindo, essas “alucinações”, como dizem os médicos, são fenômenos da consciência alterada, que visa não o prazer, mas quebrar a racionalidade de Castaneda, forçando uma abertura para o entendimento do mundo na ótica da feitiçaria.
Como conseqüência, dos cinco primeiros anos de aprendizado, sua idéia de mundo foi abalada, ele quase pirou. Entrou em profunda crise existencial, deixando por dois anos de encontrar-se com Dom Juan, e decidir se continuava ou não.
Em abril de 1968, Castaneda retorna depois de superar essa crise, começando então, o Segundo Ciclo do Poder. Nessa fase trava conhecimento com o grupo de feiticeiros do qual fazia parte seu Benfeitor: Vicente, Sílvio, Benigno, Nestor, Pablito, Eligio, e o extraordinário Dom Genaro, que era um índio mazateca super brincalhão. Castaneda vive situações grotescas e até ridículas, por sua causa, a racionalidade, o que torna a leitura um desbunde de risos. Conceitos e representações de uma cosmovisão mítica fazem parte desse ciclo. Um deles, é que o meio mais eficaz de se viver, é como guerreiro; que a morte está a um braço de distância; a difícil, compreensão do "ver" dos feiticeiros; o confronto mortal com bruxa LaCatalina; a loucura controlada e o "parar o mundo". Que existem três tipos de seres da Natureza: os Silenciosos que nada podem oferecer ao homem; os Tenebrosos que estão sempre associados com os primeiros e cuja única qualidade é assustar; e o terceiro, são os "aliados", ou doadores de segredos. Esses podem habitar lugares como matas, olhos d'água, vales e morros, etc. O aliado também é explicado como um poder que o homem pode introduzir em sua vida para ajudá-lo e dar-lhe a força necessária, um Auxiliar para o bruxo.
VONTADE
Na visão dos feiticeiros os seres humanos são criaturas luminosas com aparência de um ovo, cheio de filamentos. O que nos torna infelizes é desejar; devemos reduzir a zero nossas necessidades. Ser pobre ou necessitado é apenas uma ideia, assim como também é o ódio, a fome e a dor. A vontade é um poder. Ela é clara e poderosa, pode dirigir os nossos atos. É o elo entre os homens e o mundo; é uma força, um poder dentro da gente capaz de fazer o feiticeiro atravessar um muro. Segundo Dom Juan, a Vontade se localiza na altura do umbigo.
As mais estranhas situações foram vividas por ele, como passar uma noite inteira sozinho no mato sendo atormentado por criaturas que lhe dava tapinhas na nuca. De olhos fechados, sua única defesa foi dobrar-se protegendo o umbigo com as mãos e ficar imóvel até o dia clarear. Experiências que forçavam um ato marcante e necessário para um aprendiz de feiticeiros: "parar o mundo". E só consegue atingir esse ponto quando se dá o misterioso encontro com seu aliado na forma de um coiote, que conversa com ele. Esse acontecimento mágico fez o mundo de Castaneda parar.
Estava aberto para ele o mundo da feitiçaria. Daí pra frente sua obra torna-se fantástica e quase incompreensível, mas isso fica para outro dia.
Cabe, lembrar que esse texto foi publicado originalmente em 1990, num dos jornais de Manaus, quando Castanêda ainda não tinha falecido.
Nenhum comentário:
Postar um comentário