
Consideradas pessoas malditas, e satanizadas pela mídia, personagens como o inglês Aleister Crowley, apelidado de a “Besta 666”, lembrado numa das músicas de Raul Seixas, que sonhava com uma sociedade alternativa, e numa das capas do álbum dos Beatles, é um dos três que fizeram sua parte. O que os leitores da saga “Crepúsculo” ignora, a expressão “beijo de fogo” ou “vampiro”, está relacionada também ao mago inglês, apesar de ter virado uma doce e romântica novela mórbida, que rende muito dinheiro aos produtores de filmes americanos. Também não é por acaso o sucesso e interesse pelos vampiros, porque inconscientemente todos sabem e queremos esquecer, que milhões de animais são trucidados para nos alimentar com sua carne e seu sangue – somos nós os verdadeiros vampiros. O autor do livro “Drácula”, Bram Stoker e Aleister Crowley fizeram parte da Golden Dawn.

A terceira figura misteriosa que marcou sua passagem pela Europa e América no século IX, é George Ivanovitch Gurdjieff (1872-1949), cujo livro mais critico e interessante pelas ironias que faz ao gênero humano, em forma de literatura de ficção, “Relatos de Belzebu ao seu neto”, publicado pela primeira vez em 1950. Belzebu, aquele mesmo da rebelião que houve nos céus, está a bordo da gigantesca espaçonave Karnak, em viagem com seu neto Hassin, passando próximo ao nosso planeta Terra. Gurdjieff fala naturalmente em grandes espaçonaves num universo habitado por seres inteligentes na década de 50. E o mais desconcertante – os planetas e as estrelas são seres vivos, e como tais, precisam ser nutridos, como tudo no Universo.
É profundamente cruel as revelações de Belzebu ao seu neto Hassim, quando descreve o destino dos seres tricerebrais da terra, os seres humanos, sua destinação na economia da Natureza. Ao contrário dos dogmas das três religiões monoteísta, com sua psicologia de rebanho, pecado, salvação, céu e inferno – as criaturas da Terra e principalmente os humanos – são escravos biológicos que alimentam o planeta, a Lua e o Universo com uma energia que acumulam durante suas vidas. Essa energia, nomeada de “Askokin”, é o preço que pagamos por nossa existência, e não era segredo para os antepassados de outras épocas. Tanto é verdade que inventaram os sacrifícios de animais para agradar as divindades, pois eles também produzem essa energia. Todo trabalho de magia, negra ou não, se baseia no principio de oferecer energia a uma divindade – Askokin - matando um animal e derramando seu sangue, que por tradição é considerado de propriedade mágicas. Inconscientemente os cristãos repetem uma frase significativa sob esse prisma: “o sangue de Cristo salva!”, e a ideia principal do Catolicismo é que Jesus foi “sacrificado” para salvar uma humanidade “pecadora”, que herdou a maldição proferida contra Adão e Eva lá no Jardim do Éden. Curiosamente, o Gênesis bíblico passa a ideia de rebanho, criaturas diversas, criadas por um ser cósmico. Mas um fazendeiro humano jamais iria criar um rebanho de gado, ovelhas, aves, apenas para ser adorado por essas criaturas. O que há de tenebroso nas religiões e no papel dos sacerdotes a serviço de um Demiurgo cego?
“Maldito o homem que confia no Homem!”.., frase bíblica. “Uma mentira repetida milhares de vezes torna-se uma verdade”, dizia um dos homens de Hitler. O Inferno tá cheio de pessoas com boas intenções; e o homem Jesus falava de “cegos, que guiam cegos”. Nunca a humanidade esteve tão perdida e iludida por cegos.
Afinal, após cruéis considerações sobre a cômica ocupação dos seres humanos para preencher o vazio de suas existências, Belzebu, nome que invoca medo e superstição aos tolos, descreve ao neto a situação da psicologia, a consciência dos seres humanos, numa existência direcionada para a morte inevitável. Nascemos realmente com uma “alma” que poderá sobreviver? Ou temos que construir uma? E porque a doutrina de rebanho não fala de uma “segunda morte”? Hoje, na nossa civilização tecnológica, dizia Gurdjieff: “os homens morrem como cães!”, na mais profunda ignorância e no desespero da incerteza.
Para Gurdjieff “as pessoas deste planeta não possuem alma ao nascer”. O que tem é uma consciência criada num universo cultural, de socialização. “Os homens nascem em um estado de consciência enevoado e confuso. Não estão despertos ao nascer, ao contrário, estão adormecidas”. “O estado de vigília que a humanidade conhece é, meramente, outra forma de sono. – É necessário despertar”. São ideias que explicam por que há grupos fechados de irmandades, ocultismo, e várias formas de interpretar textos antigos, como velhos relatos traduzidos, adulterados e interpretados por sacerdotes fanáticos, a serviço de um poder. Sem dúvida alguma, as escolas e as igrejas principalmente, são aparelhos ideológicos do Estado.
A vantagem que o capitalismo, a sociedade industrial que sustenta a burguesia contemporânea, nos proporcionada, é não ser torturado e julgado pela Inquisição. Ser queimado na fogueira. Mas porque a Igreja fundada no governo de Constantino, no decadente final do Império Romano, executou milhares de pessoas na fogueira, e pela espada, em toda a Europa medieval?. O do que tinha medo, se era portadora de uma doutrina verdadeira?
Para um resumo das ideias do misterioso e extraordinário autor de “Relatos de Belzebu ao seu neto”, vou reproduzir dois trechos de um livro realmente interessante publicado no Brasil há algum tempo, por volta de 1977: “O Despertar dos Mágicos”, de Louis Pauwels e Jacques Bergier, sobre o “Estado de Vigília” de Gurdjiff. O primeiro, escrito por Ouspensky, um dos principais discípulo do mestre, e o segundo, um escritor pouco conhecido chamado Gustav Meyrinck.

"Para compreender a diferença entre os estados de consciência é necessário voltar ao primeiro, que é o sono. Ë um estado de consciência inteiramente subjetivo. O homem mergulha nos seus sonhos — pouco importa que deles conserve ou não a recordação. Mesmo se algumas impressões reais atingem o homem adormecido, tais como sons, vozes, calor, frio, sensações do seu próprio corpo, elas só despertam nele imagens fantásticas. Depois o homem acorda. Â primeira vista é um estado de consciência completamente diferente. Ele pode mover-se, falar com outras pessoas, fazer projetos, ver perigos, evitá-los etc. Parece razoável pensar que se encontra numa situação melhor do que enquanto dorme. Mas se nós vemos as coisas um pouco ! mais a fundo, se lançarmos um olhar ao seu mundo interior, aos seus pensamentos, às causas das suas ações, compreenderemos que está quase no mesmo estado que quando dorme. Ë mesmo talvez pior, porque no sono está passivo, o que quer dizer que nada pode fazer. Pelo contrário, no estado de vigília pode agir sem interrupção e os resultados das suas ações repercutir-se-ão nele e naquilo que o rodeia. E no entanto não se recorda de si. É uma máquina, tudo lhe acontece. Não pode fazer parar a vaga dos seus pensamentos, não pode controlar a imaginação, as suas emoções, a sua atenção. Vive num mundo subjetivo de "eu gosto", "não gosto", "isto agrada-me", "aquilo não me agrada", "desejo", "não desejo", quer dizer, um mundo feito daquilo de que julga gostar ou não gostar, desejar ou não desejar. Não vê o mundo real. O mundo real está-lhe vedado pelo muro da própria imaginação. Ele vive no sono. Dorme. E aquilo que chama a sua "consciência lúcida" não é mais que sono — e um sono muito mais perigoso que o seu sono da noite, na cama.
"Consideremos qualquer acontecimento da vida da humanidade. Por exemplo, a guerra. Há guerra neste momento. O que quer isto dizer? Isto significa que vários milhares de adormecidos esforçam-se por destruir vários milhares de outros adormecidos. Recusar-se-iam a isso, evidentemente, se despertassem. Tudo o que atualmente se passa é devido a esse sono.
"Estes dois estados de consciência, sono e estado de vigília vulgar, são tão subjetivos um como o outro. Só quando começa a recordar-se de si próprio é que o homem pode na verdade despertar. Em seu redor toda a vida adquire então um aspecto e um sentido diferente. Ele a vê como uma vida de pessoas adormecidas, uma vida de sono. Tudo o que as pessoas dizem, tudo o que fazem, dizem-no e fazem-no durante o sono. Nada disso, portanto, pode ter qualquer valor. Apenas o despertar e o que leva ao despertar pode ter um real valor."
"Quantas vezes já me perguntaram se não seria possível fazer parar as guerras? Evidentemente que seria possível. Bastaria que as pessoas despertassem. Isso parece bem fácil. No entanto, nada seria mais difícil, porque o sono é trazido e mantido por toda a vida ambiente, por todas as condições da ambiência.
"Como despertar? Como escapar a esse sono? Estas perguntas são as mais importantes, as perguntas vitais que um homem se deve pôr. Mas, antes de as pôr, deverá convencer-se da veracidade do seu sono. E só lhe será possível convencer-se tentando despertar. Quando tiver compreendido que não se. recorda de si próprio e que a lembrança de si significa até certo ponto um despertar; quando tiver visto por experiência quanto é difícil recordar-se de si mesmo, então ele compreenderá que para despertar não é suficiente desejá-lo. Mais rigorosamente, diremos que um homem não pode despertar por si mesmo. Mas se vinte homens combinarem que o primeiro entre eles a acordar acordará os outros, já têm uma probabilidade. No entanto, isso também é insuficiente, porque esses vinte homens podem adormecer ao mesmo tempo, e sonhar que despertam. Não é portanto suficiente. É necessário mais ainda. Esses vinte homens devem ser vigiados por um homem que não esteja adormecido ou que não adormeça tão facilmente como os outros, ou que vá dormir conscientemente quando for possível, quando disso não resulte qualquer mal nem para ele nem para os outros. Devem procurar um homem desses e contratá-lo para que os desperte c não lhes permita tornar a cair no sono. Sem isso é impossível despertar. É isso que importa compreender.
"Ë possível pensar durante um milhar de anos, é possível escrever bibliotecas inteiras, inventar teorias aos milhões e tudo isso durante o sono, sem qualquer possibilidade de despertar, pelo contrário, essas teorias e esses livros escritos ou fabricados por adormecidos terão simplesmente como resultado arrastar outros homens para o sono e assim indefinidamente.
"Não há nada de novo na ideia do sono. Quase desde a criação do mundo, foi dito aos homens que eles estavam adormecidos, e que deveriam despertar. Quantas vezes lemos, por exemplo, nos Evangelhos: "Despertai", "velai", "não fiqueis a dormir!" Os discípulos de Cristo, mesmo no jardim de Getsêmani, enquanto o seu Mestre rezava pela última vez, dormiam. Isto diz tudo. Mas compreendem-nos os homens? Tomam o fato como uma figura de retórica, uma metáfora. Não veem de forma nenhuma que isto deve ser tomado à letra. E também aqui é fácil compreender por quê. Ser-lhes-ia necessário despertar um pouco, ou pelo menos tentá-lo. De fato, foi-me várias vezes perguntado por que motivo os Evangelhos nunca falam do sono... Fala-se em todas as páginas. Isto apenas prova que as pessoas leem os Evangelhos a dormir."
"Em regra geral, que é necessário para despertar um homem adormecido? Ë necessário um bom choque. Mas quando um homem está profundamente adormecido, um único choque não é suficiente. Um longo período de choques incessantes torna-se, necessário. Por consequência, é preciso alguém para administrar esses choques. Eu já disse que o homem desejoso de despertar deve procurar o auxílio que se encarregará de sacudi-lo durante muito tempo. Mas quem pode ele procurar, se toda a gente dorme? Ele procura alguém que o desperte, mas esse também adormece em breve. Qual será a sua utilidade? Quanto ao homem realmente capaz de se manter desperto, recusará provavelmente perder o seu tempo a despertar os outros: pode ter trabalhos muito mais importantes.
"Há também a possibilidade de despertar por processos mecânicos. Pode usar-se um despertador. A desgraça quer que nos habituemos, depressa demais, a qualquer despertador: deixamos de ouvi-lo, muito simplesmente. São portanto necessários vários despertadores, com campainhas diferentes. O homem deve literalmente rodear-se de despertadores que o impeçam de dormir. E aqui surgem mais dificuldades. Os despertadores precisam de corda; para lhes dar corda é preciso lembrar-se; para nos lembrarmos é necessário acordar várias vezes. Mas eis o pior: um homem habitua-se a todos os despertadores e, após um certo tempo, ainda dorme melhor. Por consequência, os despertadores devem ser continuamente mudados, é necessário inventar constantemente novos. Com o tempo, isto pode auxiliar um homem a acordar. Ora, há muito poucas probabilidades de que ele faça todo esse trabalho de inventar, dar corda e mudar todos esses despertadores por si mesmo, sem auxílio exterior. Ë muito mais provável que ao começar esse trabalho cie não tarde em adormecer e que, durante o sono, sonhará que inventa despertadores, que lhes dá corda, que os muda — e, como já disse, cada vez dormirá melhor.
"Portanto, para despertar é preciso uma conjunção completa de esforços. Ë indispensável que haja alguém para despertar o adormecido; é indispensável que haja alguém para vigiar aquele que acorda; é necessário ter despertadores, e é igualmente necessário inventar constantemente novos."
"Mas para levar a bom termo esse empreendimento e obter resultados, devem trabalhar várias pessoas em conjunto.
"Um homem sozinho nada pode fazer.
“Antes de mais nada, precisa de auxílio. Mas um homem sozinho não pode contar com auxílio. Aqueles que são capazes de auxiliar avaliam o seu tempo por um preço muito alto. E naturalmente preferem ajudar, digamos, vinte ou trinta pessoas desejosas de despertar, a uma única. Além disso, como já disse, um homem pode muito bem enganar-se a respeito do seu despertar, tomar como despertar aquilo que não passa de um novo sonho. Se algumas pessoas decidem lutar em conjunto contra o sono, despertar-se-ão mutuamente. Acontecerá muitas vezes que uma vintena dentre elas dormirá, mas a vigésima primeira despertará, e acordará as outras.. Dar-se-á o mesmo com os despertadores. Um homem inventará um despertador, um segundo inventará outro, após o que poderão fazer uma troca. Todos juntos podem ser de grande auxílio uns para os outros, e sem esse auxílio mútuo nenhum deles pode conseguir seja o que for.
"Portanto, um homem que pretende despertar deve procurar outras pessoas que desejem igualmente acordar, a fim de trabalhar com elas. Mas isto é mais facilmente dito que feito,
porque o empreendimento de tal trabalho e a sua organização exigem um conhecimento que o homem vulgar não possui. O trabalho deve ser organizado e deve haver um chefe. Sem essas duas condições, o trabalho não pode dar os resultados esperados, e todos os esforços serão vãos. As pessoas poderão torturar-se; mas essas torturas não as farão despertar. Parece que para certas pessoas nada é mais difícil de compreender. Por si mesmas e por sua iniciativa podem ser capazes de grandes esforços, mas os seus primeiros sacrifícios devem ser de obedecer a outro: nada no mundo conseguirá persuadi-las.
"E não querem admitir que todos os seus sacrifícios, neste caso, de nada servem.
"O trabalho deve ser organizado. E só o pode ser por um homem que conheça os seus problemas e os seus objetivos, que conheça os seus métodos, tendo ele mesmo passado, no seu tempo, por semelhante trabalho organizado."
Estas opiniões de Gurdjieff são insertas na obra de P. D, OUSPENSKY; Fragments d'un Enseignement ínconnu. Ed. Stock, Paris, 1950.
2 - O ADMIRÁVEL TEXTO DE GUSTAV MEYRINCK
A chave que nos tornará mestres da natureza interior ficou enferrujada desde o dilúvio.
Ela chama-se: velar.
Velar é tudo.
O homem está firmemente convencido de que vela; mas, na realidade, é apanhado numa rede de sono e de sonho que ele próprio teceu. Quanto mais apertada é essa rede, mais poderosamente reina o sono. Aqueles que estão presos nas suas malhas são os adormecidos que caminham através da vida corno rebanhos de animais levados para o matadouro, indiferentes e sem pensamentos.
Os sonhadores veem através das malhas um mundo quadriculado, só distinguem aberturas enganadoras, agem em consequência e não sabem que esses quadros são apenas os fragmentos insensatos de um todo enorme. Esses sonhadores não são, como talvez o suponhas, os lunáticos e os poetas; são os trabalhadores, os sem-repouso do mundo, os possessos da loucura de agir. Assemelham-se a escaravelhos feios e laboriosos que se arrastam ao longo de um cano liso para nele mergulharem ao chegar lá em cima. Dizem que velam, mas aquilo que julgam uma vida não é na realidade senão um sonho, determinado antecipadamente nos mínimos pormenores e subtraído à influência da sua vontade.
Existiram e ainda existem alguns homens que souberam que sonhavam, os pioneiros que avançavam até aos baluartes atrás dos quais se esconde o eu eternamente desperto — videntes como Descartes, Schopenhauer e Kant. Mas eles não possuíam as armas necessárias para a tomada da fortaleza e o seu apelo ao combate não acordou os adormecidos.
Velar é tudo.
O primeiro passo para esse objetivo é tão simples que qualquer criança pode fazê-lo. Só aquele que tem o espírito falsificado esqueceu corno se caminha, e mantém-se paralisado sobre os seus dois pés, pois não se quer privar das muletas que herdou dos seus antecessores.
Velar é tudo.
Vela em tudo o que fazes í Não te julgues já desperto. Não, tu dormes e sonhas.
Reúne todas as tuas Torças e espalha um instante pelo teu corpo este sentimento: agora, eu velo!
Se o conseguires, reconhecerás imediatamente que o estado no qual te encontravas surge então como uma modorra e um sono.
É o primeiro passo hesitante do longo, muito longo percurso que leva da servidão ao completo poder.
Desta forma avança, de despertar em despertar.
Não existe pensamento tormentoso que desta, maneira não possas banir. Ele fica para trás e já não te pode atingir. Estendes-te sobre ele como a copa de uma árvore se eleva por sobre os ramos secos.
As dores afastam-se de ti como folhas mortas quando essa vigília se apossa igualmente do teu corpo.
Os banhos gelados dos brâmanes, as noites de vigília dos discípulos de Buda e dos ascetas cristãos, os suplícios dos faquires não são mais que os ritos estereotipados indicando que ali se erguia outrora o templo daqueles que se esforçavam por velar.
Lê as Escrituras Sagradas de todos os povos da Terra. Em cada urna delas passa como um fio vermelho a ciência dissimulada da vigília. É a escada de Jacó, que combate toda a "noite" com o anjo do Senhor, até que chegue o "dia" e obtenha a vitória.
Deves subir, um após outro, os degraus do despertar, se queres vencer a morte.
O degrau inferior já se chama: génio.
Como devemos chamar os degraus superiores? Ficam desconhecidos da multidão e são tidos como lendas.
A história de Tróia foi considerada uma lenda, até que finalmente um homem arranjou coragem de investigar por si mesmo.
Sobre esse caminho da vigília, o primeiro inimigo que encontrarás será o teu próprio corpo. Ele lutará contigo até o primeiro cantar do galo. Mas se vislumbrares a luz da vigília eterna que te afaste dos sonâmbulos que supõem ser homens e ignoram que são deuses adormecidos, então o sono do teu corpo desaparecerá também e o Universo submeter-se-á a ti.
Então poderás operar milagres, se quiseres, e já não estarás reduzido, como um humilde escravo, a esperar que um cruel e falso deus seja suficientemente amável para te cumular de presentes ou te cortar a cabeça.
Há evidentemente a felicidade do bom cão-fiel: servir um amo. Ela deixará de existir para ti — mas sê franco para contigo mesmo: gostarias, mesmo agora, de trocar o lugar com o teu cão?
Não te deixes apavorar pelo medo de não atingir o objetivo nesta vida. Aquele que descobriu este caminho regressa sempre ao mundo com uma maturidade interior que lhe torna possível a continuação do seu trabalho. Ele nasce como "génio".
O caminho que te mostro está semeado de acontecimentos estranhos: mortos que conheceste hão de erguer-se e falar-te! São apenas imagens. Silhuetas luminosas aparecer-te-ão para te abençoar. São apenas imagens, formas exaltadas pelo teu corpo que, sob influência da tua vontade transformada, morrerá de uma morte mágica e se tornará espírito, tal como o gelo, atingido pelo fogo, se dissolve em vapor.
Quando tiveres abandonado em ti o cadáver é que então poderás dizer: agora o sono afastou-se de mim para sempre.
Então dar-se-á o milagre em que os homens não acreditam — porque, enganados pelos seus sentidos, não percebem que matéria e força são a mesma coisa — nem compreendem, esse milagre que, mesmo se o enterrarem, não haverá cadáver no caixão.
Só então poderás diferenciar o que é realidade ou aparência. Aquele que encontrares só poderá ser um dos que seguiram o caminho antes de ti.
Todos os outros são sombras.
Até ali tu não sabes se és a criatura mais feliz ou a mais infeliz. Mas nada receies. Nem um sequer dos que seguiram pelo caminho da vigília, mesmo se alguma vez se perdeu, jamais foi abandonado pelos seus guias.
Quero dar-te um sinal pelo qual poderás reconhecer se uma aparição é realidade ou miragem: se ela se aproxima de ti, se a tua consciência se perturba, se as coisas do mundo exterior são vagas ou desaparecem, desconfia. Acautela-te! A aparição não passa de uma parte de ti mesmo. Se não a compreendes, é apenas um espectro sem consistência, um gatuno que consome uma parte da tua vida.
Os gatunos que adquirem a força da alma são piores do que os, gatunos do mundo. Atraem-te como fogos-fátuos nos pântanos de uma esperança enganadora, para te deixarem só nas trevas e desaparecerem para sempre.
Não te deixes cegar por nenhum milagre que eles pareçam fazer por ti, por nenhum nome sagrado que se deem, por nenhuma profecia que exprimam, nem mesmo se esta se realizar; eles são os teus inimigos mortais, expulsos do inferno do teu próprio corpo e com os quais tu lutas pelo domínio.
Sabe que as forças maravilhosas que eles possuem são as tuas próprias — desviadas por eles para te manterem na escravatura. Eles não podem viver fora da tua vida, mas se os venceres ficarão aniquilados, como ferramentas mudas e dóceis que poderás empregar segundo as tuas necessidades.
Inúmeras são as vítimas que eles fizeram entre os homens. Lê a história dos visionários e dos sectários e compreenderás que o caminho que segues está semeado de crânios.
Inconscientemente, a humanidade ergueu contra eles um muro: o materialismo. Esse muro é uma defesa infalível, é uma imagem do corpo mas é também o muro de uma prisão que , dissimula a vista.
Atualmente estão dispersos e a fénix da vida interior ressuscita das cinzas nas quais esteve deitada durante muito tempo, como morta, mas os abutres de outro mundo também começam a bater as asas. É por isso que deves tomar cuidado. A balança sobre a qual deporás a tua consciência mostrar-te-á quando podes ter confiança nessas aparições. Quanto mais desperta ela estiver, mais se inclinará a teu favor.
Se um guia, um irmão de outro mundo espiritual te quer aparecer, deve poder fazê-lo sem despojar a tua consciência. Podes pousar a mão sobre ele como Tomé, o incrédulo.
Seria fácil evitar as aparições e seus perigos. Basta conduzires-te como um homem vulgar. Mas que ganhas com isso? Continuas a ser um prisioneiro na jaula do teu corpo até que o carrasco "Morte" te conduza ao cadafalso.
O desejo dos mortais de verem os seres sobrenaturais é um grito que desperta até os fantasmas do inferno, porque semelhante desejo não é puro; — porque é mais avidez do que desejo, porque quer "tomar" de qualquer maneira em vez de gritar para aprender a "dar".
Todos aqueles que consideram a Terra como uma prisão, todas as pessoas piedosas que imploram a libertação evocam sem se aperceberem o mundo dos espectros. Faze-o também tu mesmo. Mas conscientemente.
Para aqueles que o fazem inconscientemente existirá uma mão invisível que os possa retirar do pântano onde se atolam? Eu não o acredito. Quando sobre o caminho do despertar atravessares o reino dos espectros, reconhecerás pouco a pouco que eles são simplesmente pensamentos que de súbito poderás ver com os teus pró-mente pensamentos que de súbito poderás ver com os teus próprios olhos. Eis por que te são estranhos e parecem ser criaturas, pois a linguagem das formas é diferente da do cérebro.
Então chegou o momento em que a transformação se dá: os homens que te rodeiam transformar-se-ão em espectros. Todos aqueles que amaste serão, de súbito, larvas. Mesmo o teu próprio corpo.
Não se pode imaginar mais terrível solidão que a do peregrino no deserto, e quem não sabe encontrar aí a fonte da vida morre de sede.
Tudo o que aqui te digo se encontra nos livros dos homens piedosos de todos os povos: a vinda de uni novo reino, a vigília, a vitória sobre o corpo e a solidão.
E no entanto um abismo intransponível nos separa dessas pessoas piedosas: elas supõem que se aproxima o dia em que os bons entrarão no paraíso e os maus serão atirados para o inferno. Nós sabemos que um tempo virá em que muitos despertarão e serão separados dos adormecidos que não podem compreender o que significa a palavra vigília. Nós sabemos que não existe o bom e o mau, mas apenas o exato e o falso. Eles creem que velar significa manter os seus sentidos lúcidos e os olhos abertos durante a noite, de forma que o homem possa i fazer as suas orações. Nós sabemos que a vigília é o despertar do eu imortal e que a insónia do corpo é uma consequência natural. Eles creem que o corpo deve ser descurado e desprezado, porque é pecador. Nós sabemos que não existe pecado; o corpo é o começo da nossa obra e viemos à Terra para transformá-lo em espírito. Eles creem que deveríamos viver na solidão com o nosso corpo para purificar o espírito. Nós sabemos que o nosso espírito deve primeiramente isolar-se para transfigurar o corpo.
Só a ti cabe a escolha do caminho a tomar: ou o nosso ou o deles. Deves agir segundo a tua própria vontade.
Não tenho o direito de te aconselhar. É mais salutar colher segundo a tua própria decisão um fruto amargo de uma árvore, do que ver pendurar um fruto doce aconselhado por outrem.
Mas não faças como muitos que sabem que está escrito: examinai tudo e só conservai o melhor. É, preciso ir, nada examinar e agarrar a primeira coisa que aparecer.
Gustav MEYRINCK: Excerto do romance Lê Visage Vert, traduzido pelo Doutor Etthofen e Mlle Perrenoud. Ed. Emile-Paui Frères, Paris, 1932.